Quantos sou eu? Quase auto-retratos.
Hélder Chambel
Sou psicólogo, daqueles psicólogos que o que mais faz é ser testemunha do sofrimento dos outros, apenas isso, ser testemunha. Aprendi muito sobre mim neste lugar, perigoso e traumático, que sofrem muito os humanos, violências imensas, e às vezes nem o sabem.
A Ana Joana pediu-me ajuda, ligou-me e explicou que sofria de problemas que não entendia. Contou-me que era uma bióloga respeitada, professora universitária, com currículo dentro e fora da academia. Sucedeu-lhe que foi convidada para um congresso onde apresentaria o mais importante do trabalho do seu laboratório, habitualmente recusa, desta vez aceitou, tinha qualquer coisa para dizer. O moderador da mesa começou por apresentar Joana: “professora doutora Ana Joana doutorada em…” especialista nisto e naquilo e por aí fora, que o currículo de Ana é vasto, contou-me Joana que, ao ouvir isto, começou a sentir-se estranha: “falam de mim? Será engano?” pensou, “serei eu esta pessoa?”, e sentiu-se tonta, remata o moderador: “para além do mais é uma mulher muito divertida de quem tenho o prazer de ser amigo”. Foi golpe fatal, Joana desmaiou, o seu corpo deixou-se escorregar pela cadeira e deitou-se abruptamente no chão do auditório, alvoroço, ambulância, Joana acabou por acordar, e no hospital, depois de exames vários, “nada de especial, algum mal-estar, vejamos se volta a acontecer”.
Segunda-feira, três da tarde, Ana Joana está à minha frente, passadas formalidades e simpatias iniciais, diz: “disseram-me que era boa ideia fazer psicoterapia…” E eu: “Ok Ana, fale-me um pouco de si, quem é a Ana Joana?” E de repente o estranho aconteceu, Joana desapareceu. Fiquei sozinho na sala. Os olhos de Ana passavam através de mim para além de mim, olhei para trás para perceber para onde olhava Joana, não entendi… assustei-me e chamei-a; “Joana!” e, devagar, Ana aterrou nos meus olhos e disse: “sabe Hélder tenho um pesadelo desde pequena, coisa estranha, em que ando desesperada à procura de um espelho em minha casa, procuro e não encontro, e sabe porque procuro o espelho? Porque a minha cara está a desaparecer, a deformar-se, pastosa, a escorregar entre os dedos… procuro um espelho, mas nunca consigo ver a minha cara, você consegue imaginar o quanto isto é assustador? Pior: passam-se dias e dias e eu com esta estúpida sensação de dissolução da cara dentro da cabeça, é horrível!”.
Joana é uma boa mulher, passámos a conversar semanalmente, falou-me da sua vida, de amizades e amores, família e trabalho, falou de si, e a mim sempre me parecia Ana uma frágil e bonita aguarela em pastéis, com clareza e brilho ligeiro, uma certa paz agradável, tranquilidade de mar morto, pequenas ondas de ritmo cuidado e preciso a deitarem-se numa areia sempre igual, lugar onde poderíamos adormecer quase descansados, para pouco depois acordarmos em sobressalto numa intuição de tempestade.
Passadas algumas semanas diz Ana: “voltei ao hospital, desmaiei outra vez… foi no funeral do filho de uma amiga, a Paula, era um bom miúdo, 30 e pouco, arquitecto, com a mulher grávida… uma desgraça. Um acidente na auto-estrada para o Algarve, nem percebi como nem quero saber. Cheguei lá, a mãe chorava, derrotada, a mulher do rapaz pior… ambiente estranho, pesado, fiquei à porta do velório a olhar lá para dentro, não consegui entrar, comecei a sentir-me tonta, encostei-me à parede e só me lembro de escorregar parede abaixo, acordei com dezenas olhos a olhar para mim. Hospital, mais exames e nada… consegues ver a estúpida que sou Hélder? A mãe a quem morre um filho ali, triste, é verdade, mas de pé, e eu desmaiada no chão.... dá para acreditar?”
Passado mais algum tempo: “acho que a psicoterapia me anda a fazer mal, voltei ao hospital, estava numa reunião, a directora da faculdade informava de cortes no orçamento, ao que parece na minha equipa não publicamos o suficiente, e temos poucos doutorados comparativamente com outras equipas, de forma que a cortar em algum lado será na minha equipa, terei de mandar embora dois colegas, e não sei bem o que me aconteceu, senti-me tonta e apaguei outra vez, acordei na ambulância, mais um dia de hospital… porra!”
Mais à frente digo eu: “Ana, diz-me uma coisa: O que ficas sentes quando pensas no que aconteceu à tua amiga, a quem morreu o filho?” e a Ana: “fico a pensar que nunca sabemos o que nos espera na vida”. E eu: “Isso é o que pensas, perguntei o que sentias.” e Joana: “Como assim sentir?”. Explico: “sentimos coisas, ficamos tristes, alegres, zangados… nunca ficas triste?”. E remata Joana: “Não, eu não sou esse tipo de pessoa, estou sempre bem, odeio esse tipo de pessoas, tristes…são uns tristes Hélder”
Insisto: “E diz-me outra coisa: o que sentiste quando a directora te disse que, por aqueles motivos, tinhas de demitir dois colegas?” e, tranquila, Ana responde na paz dos demónios: “pensei que às vezes temos de fazer coisas difíceis na vida…” Espanto-me com a resposta de raspão: “Isso é o que pensaste. O que sentiste?” Estranha-me a Ana: “Como assim? O que queres dizer com isso?” e eu explico outra vez que “as pessoas ficam tristes, alegres, zangadas…”. E a Joana: “ah, isso… talvez…”. Insisto: “nunca ficas com raiva?” e a Ana: “Não Hélder, eu não sou esse tipo de pessoa, raiva… por favor… estou sempre bem, odeio pessoas raivosas.”
Tento pensar com a Ana: “Sabes Joana, há em nós partes de nós que são tristes, as pessoas e a vida deixam-nos tristes muitas vezes, tanto que somos capazes de nos matar, e há partes de nós que são muito zangadas, a vida e as pessoas fazem-nos sentir raiva, tanta que às vezes somos capazes de matar.” E a Ana Joana sem pensar duas vezes: “Não me lixes Hélder, eu não sou esse tipo de pessoas, não sou essas pessoas. Sou una, sou a Ana Joana.” E eu armado em terapeuta: “Sabes Ana, acho que és a Ana, sim, mas és mais, muitas mais, habitua-te a falar com todas as que és, ou vais passar a vida à tua procura num espelho qualquer que nunca encontras, enquanto a tua cara se deforma entre os dedos e te odeias a ti própria.” E a Joana muito despachada “Não me lixes com essas merdas psicanalíticas Hélder, em que livro leste isso?”. E eu, agora mais tranquilo, sorri, em resposta ao meio sorriso de Ana escondido naquela agressiva, mas bonita, provocação, Ana Joana, estava, afinal, acordada. Viva.
Somos quase auto-retratos, tentamos photomatons, “apresentações do rosto”, um, dois, dez, vinte, escolhemos um, somos mais, somos dois, dez, vinte, tantos que nem sabemos, somos um infinito desconhecido universo, cada um de nós. Podemos conhecer-nos? Sim, tanto quanto podemos conhecer o infinito universo.
Alguém nos disse que éramos unos, coesos, que tínhamos uma personalidade, e que, bem vistas as coisas, poderíamos afinal saber quem somos. Mas não somos unos, somos um movimento que sai e não sabe para onde vai, não somos coesos, somos múltiplos em cada relação e circunstância, antagónicos, com diferentes princípios e valores consoante circunstâncias e relações, num diálogo interno quase impossível, em guerra muitas vezes, e é aqui que nos deitamos para tantas vezes, não conseguirmos adormecer. Quase somos, quase entendemos o que pensamos e não pensamos. Somos infinitas polaroids, rasgadas, coladas, pintadas, mostradas, escondidas. Também somos cicatrizes e amor, somos deus e diabo, somos dor. Somos interpessoais, não temos persona, quem somos está aqui entre nós, dizem os africanos que “eu sou porque tu és”. E ao nosso rosto nunca poderemos realmente ver. E posso ter uma história, um país, uma cultura, posso ter uma profissão, posso ter nome, Manuel, António, Maria e Sofia, psicólogo, carpinteiro ou pedreiro, posso ser pai, filho e avó, posso ser mãe e ser homem, ou mulher, posso não ser homem nem mulher, posso ser pessoa, humanidade e desumanidade, posso ser mil nomes, palavras, mas nenhuma, na sua particularidade ou no seu conjunto, na sua simplicidade ou na sua complexidade, consegue fechar-me numa definição de mim, e a experiência desta vida que vivo todos dias sempre me faz outro a cada instante. Somos “líquidos”, múltiplos, mesmo quando quase sabemos quem somos. Não sei mesmo se algum dia, por alguma circunstância, queria mesmo saber quantos mais sou eu, acho que não, absolutamente, por exemplo, penso nos meus filhos e no corpo que são de mim, a minha vida é amoral perante a vida dos meus filhos. E mais não sei, mas continuo a procurar respostas, para saber quem sou, e por que raio sou eu deste jeito e não de outra maneira qualquer. É o que neste Livro se tenta fazer, cada um ao seu jeito, tenta responder à mesma pergunta: Quem sou eu?
Tavira, 19 de Novembro de 2023
Hélder Chambel